Diário da Queda I: uma poética do abismo

São 22h30min de uma quarta-feira, 3 de novembro de 2021. Estou sentado em frente a uma mesa num apartamento localizado no Centro de Guaíba, cidade separada da capital Porto Alegre pelas águas de um rio que vejo da minha janela. Há raios desabando e anunciando uma tempestade para breve. Um cenário noturno que remete a paisagens apocalípticas. A mil, setecentos e vinte e sete quilômetros daqui, no gramado do Mineirão, em Belo Horizonte, o meu time, neste exato instante, comprova definitivamente que será rebaixado pela terceira vez no Campeonato Brasileiro.

O jovem Campaz, que há minutos nos fizera a todos os gremistas sorrir com um gol inesperado e hábil nascido de sua perna esquerda – nós que já desaprenderamos a sorrir durante os jogos do Grêmio –, alçou o braço esquerdo de maneira infantil após a cobrança de uma falta, como quem se alonga displicentemente na academia, cometeu um pênalti grosseiro e abriu caminho para mais uma derrota. Penso nas imensas cavas que durante o século XVIII foram abertas para arrancar ouro e outros minérios preciosos dos solos a algumas centenas de quilômetros daquele estádio. O chão deixava de ser um limite físico em oposição ao céu, havia um maravilhoso inferno dourado abaixo dele. Um inferno do qual talvez nosso país nunca mais tenha saído. Pois o Mineirão, naquele momento, era uma dessas cavas, abria abismos idênticos àqueles seculares que extraíram as riquezas e maldições do solo. Abismos, agora, para onde partimos, todos os gremistas, junto do nosso Grêmio, porque não sabemos fazer outra coisa a não ser acompanhá-lo.

Uma certeza já temos, ao menos os que mantêm vínculos mais lúcidos com a realidade: o Grêmio vai cair. E isso nos joga num pêndulo perverso entre as evidências acachapantes do descenso iminente e as paixões supersticiosas e irracionais que amarram toda e qualquer relação do torcedor com o seu time do coração. Há alguns jogos, me ponho diante da tela com a missão de recuperar todas as ingenuidades de quando criança, me opor às leis óbvias do mundo e acreditar em uma vitória. A angústia nasce, justamente, porque não sou mais criança, estou atuando, assumindo máscaras do que já fui, escondendo-me em mim, e o adulto de agora acaba, segundo a segundo derramado no cronômetro do jogo, intuindo que a qualquer momento essa criança gremista esperançosa será mutilada, maltratada, desenganada pelos gols adversários.

Foi em meio a mais uma dança pendular como essa, experimentada agora, enquanto assisto à derrota para o Galo, que tomei uma resolução: escreverei um Diário da Queda. Se abrimos um abismo e estamos em queda livre, se nos lançamos num voo vertical às avessas, novamente rumo ao inferno, à vergonha das vergonhas, se estamos nos incendiando neste abismo, calcinando todas as glórias recentes com este fogo devastador, quero encostar nas suas chamas em plena queda, me queimar do canto apaixonado e machucado da maior das derrotas, eternizá-la no instante, no presente, no agora. Hei de encontrar algum lugar de meu gremismo que ainda desconheço, se der muita sorte, visitar alguma camada nova dessa paixão insondável e meio patética que assola todos que conjugam o verbo torcer.

Já sei o que é cantar a pior das derrotas quando de seu término. Esquadrinhar o time mutilado, lá na última rodada (ou quando da confirmação do descenso), feito um legista ou arqueólogo que manipula o corpo frio, as chamas acalmadas, tudo já petrificado em cinzas ou ruínas. O mesmo que cantar a dor que nasce do luto, da ausência, das saudades. Há, aí, mais melancolia do que maldição.

Não. Este Diário está realmente interessado é no caminho para o fim. Na dança penosa, lenta, demorada, perversa, mas inevitável do rebaixamento. Porque há um abismo aberto no peito de todos os gremistas. E me dei conta de que seu nascimento não ocorreu em 2021. Vem de mais tempo, vem de antes das goleadas nas eliminações da Libertadores em 2019 e 2020, vem de antes de Bressan, de André, de Tardelli, vem de um tempo que chegamos ao topo, quando reaprendemos a escalar os lugares mais altos, quando nos sentimos invencíveis e acreditamos, ingenuamente, que éramos alheios à gravidade e podíamos voar.

Foi ali, naquele instante, quando não nos demos conta de que não havia mais como subir, que uma pequena brecha deve ter se aberto, a grafia inicial da queda. Provavelmente pensamos de passagem sobre isso, um sorriso amarelo nublou o rosto, mas logo o recalcamos, precisávamos ser felizes. E fomos. E agora não somos mais.

Por fim, é claro que não serão textos diários. Há uma mentira proposital no nome, algo que é coerente com o futebol mentiroso que vai nos rebaixar. A palavra “Diário”, aqui, aparece como um hábito, uma teimosia, um cacoete, quase um defeito inescapável. É assim que me sinto como gremista nos dias de hoje. Um erro que estou fadado a repetir eternamente, mas ainda e sempre um erro que me fala, como poucas virtudes, sobre quem eu realmente sou.

Que esses textos me ensinem a cair, a errar, a torcer cada vez melhor.

 

Foto: Valdemaras D. no Pexels.