Impertinência

Começa com uma leve desconfiança, uma raspa, um rumor miúdo. Depois passa pela superstição impossibilitada, aquela escada que se inicia a subir com o pé esquerdo, o pingo de um ar-condicionado que desaba sobre nossa cabeça, uma nuvem acinzentada que se aproxima lentamente ao final da tarde no exato momento em que nos damos conta do esquecimento da camisa tricolor sobre o sofá de casa, o ônibus que passa lá adiante na avenida e que, mesmo visto por nossos olhos, jamais seria alcançado pelos braços estendidos.

Depois dos primeiros goles de cerveja, porém, algum otimismo é despertado: Achamos que vai dar. Esquecemos, no entanto, que os primeiros goles de cerveja são aqueles que nos conectam a todas as melhores promessas da vida: amaciam-na, amainam-na, tornam a vida menos grave do que ela geralmente nos parece. Daí o engano: a gravidade do confronto se dilui, os goles da cerveja não dizem como, mas nos convencem de que é possível.

O torcedor, então, vestido de calça jeans e alguma camisa cinza sem estampa (o cinza daquela mesma nuvem), clubisticamente nu, percebe que aquele rumor de antes regressa. Olha no entorno, a família reunida e os olhos da família reunida não encarnam a mirada sanguínea das noites vitoriosas, mas uma espécie de súplica complacente.

O jogo não começa desastroso, é verdade. O time parece saber o que quer, como quer, onde quer chegar. Há uma valentia que, mesmo inferior tecnicamente ao adversário, promove movimentos corajosos, ilude de que há alguma chance de que um confronto de verdade aconteça.

E aí vem o gol perdido, a goleira escancarada, o goleiro vencido, sete metros de largura e dois metros e tanto de altura, aquele continente de redes diante do jogador, o jogador a metro e meio da linha, a bola diante de si. É aí que o torcedor sabe que o jogo se decidirá: um pé invasivo rouba o gol, espeta a bola com uma estocada cruel e inesperada. Os números arredondados no placar não se alteram.

O torcedor, então, diante do jogo, despido da camisa de seu clube, é um menino nu, levemente embriagado, exposto em toda sua fragilidade. Olha para si, olha para o entorno, qualquer otimismo falece. O gol do adversário é questão de minutos, agora ele sabe. Uma ampulheta perversa começa a fazer a areia que abriga descer vagarosamente para sua metade de baixo. O morrinho superior vai decrescendo, minguando, como se enxergássemos o tempo.

Pode chamar do que quiser, intuição, coincidência, sexto sentido, não interessa, o que interessa é que o torcedor sabe que, após aquele lance derrotado, uma derrota maior será construída, como uma cadeia de reveses. E aí é preciso não só assistir aos cinco gols do adversário, ouvir toda a repercussão após o jogo, aí é preciso passar o dia seguinte inteiro numa espécie de luto masoquista, acompanhar todos os programas esportivos, ouvir cada um dos sumários elogios ao adversário, cada um dos defeitos imperdoáveis de seu time, alimentar um remorso encardido e pegajoso, cutucar a ferida exposta da noite anterior como um cirurgião inábil, cumprir o calvário doloroso que uma derrota acachapante funda e movimenta.

E só então algo começa a agir como uma leve desconfiança, uma raspa, um rumor miúdo. A sobrevivência ao dia seguinte o faz regressar de uma dimensão inóspita: o torcedor atravessou mais uma distopia futebolística. As horas passaram, o mundo não acabou, a vida segue e logo uma rodada de final de semana se aproxima. O torcedor olha a camisa que esquecera sobre o sofá. O azul, o preto e o branco. Algo insondável reside ali. Uma teimosia, uma impertinência necessária, um clamor surdo que habita um território inteiro dentro do peito (vazio de sentido, pleno de sentimento), marca obscura e tenaz que nenhuma derrota jamais conseguirá apagar.